Bia decidiu estrear como escritora escancarando para o mundo a sua condição. Sim, ela tem transtorno bipolar. E daí?
Na verdade, Bia quer chamar a atenção para uma doença, que de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), afeta 4% da população mundial.
No Brasil, estima-se que 6 milhões de pessoas sejam bipolares.
Antes de mais nada, Bia Garbato , 42 anos, mulher, dona de casa, mãe, esposa, redatora e escritora deixa claro: – a bipolaridade não define a minha personalidade!
E na sua opinião, é hora de abandonar ideias preconcebidas sobre o transtorno bipolar e desfazer equívocos que alimentam o preconceito e o estigma social.
“Ser bipolar não é sinônimo de dupla personalidade, de dissimulação e falsidade, muito menos de louca”, ressalta a escritora que se define como uma mulher sociável, extrovertida e criativa.
Em Bipolar sim, louca só quando eu quero!, recém lançado pela editora Matrix, Bia, na verdade, expõe as vulnerabilidades de uma mulher como tantas outras.
Mulheres que lidam com os desafios relacionados à saúde mental, obesidade, sentimentos como a inveja, a maternidade e as imperfeições do casamento.
Estigma e preconceito
Um dos estigmas que marcou muito a doença, segundo Bia, foi justamente o seu antigo nome: psicose maníaco-depressiva. Quem não se lembra do filme Psicose, do diretor Alfred Hitchcock que se tornou um clássico do cinema mundial?
“Além disso, ressalta, no Brasil houve um caso célebre de um serial killer que ficou conhecido como “maníaco do parque”.
“Minha missão é desmistificar a bipolaridade e ajudar pessoas que sofrem com isso. Quero ajudar também familiares, amigos e a população em geral a compreender que o transtorno bipolar não é parte da personalidade de uma pessoa, mas uma doença”.
E sim, também é importante esclarecer que, embora seja uma doença considerada grave, é possível para muitas pessoas com transtorno bipolar levar uma vida normal, desde que devidamente tratada.
Medicamentos, psicoterapia e eletroconvulsoterapia são parte do arsenal terapêutico, disponível através da rede pública e privada da saúde. Além disso,é importante considerar o internamento, nas fases agudas, se necessário.
Eletrochoque ou endoscopia?
Conhecida popularmente como eletrochoque, a eletroconvulsoterapia talvez seja uma das técnicas mais estigmatizadas no tratamento das doenças mentais. Isto porque ficou muito associada à prática realizada em hospícios do século passado.
Mas é importante que se diga, que nos tempos atuais é uma técnica feita em ambiente amigável, de forma assistida e sob sedação.
“Ninguém se debate como nas cenas clássicas de filmes antigos”, ressalta Bia que relata a historia no seu livro.
A escritora lembra que fez duas sessões de eletroconvulsoterapia e foi mais simples e menos incômodo do que uma endoscopia. “Os resultados foram excelentes. Fiquei 8 meses sem nenhum episódio de depressão.”
Sobre a sua experiência, ela acrescenta: “só me recordo de deitar, colocarem os elétrodos na cabeça e depois acordar para um lanche”.
Os desafios do transtorno bipolar
O Transtorno Bipolar é uma doença que se caracteriza por episódios de depressão e mania ou hipomania também chamada de fase de euforia.
Tal condição pode comprometer as atividades do dia a dia. A pessoa bipolar pode alternar momentos onde estão muito em baixo com outros onde estão em alta exacerbada ou ainda ter episódios mistos.
Geralmente é a família quem dá conta de que alguma coisa está fora do eixo.
“Na fase aguda da mania, a pessoa pode fazer loucuras como gastar compulsivamente e se endividar.
Parece um paradoxo, mas isso não quer dizer que ela seja louca. Se a pessoa estiver tratada, ela vai agir como uma pessoa normal, ”afirma Bia.
“Por outro lado, posso cometer “loucuras” como dançar em cima de uma mesa numa festa, mas por que eu quero, por que sou engraçada e extrovertida e não por que eu seja bipolar”.
Na bipolaridade, além da impulsividade exacerbada, outras características que podem ser observadas na fase da euforia são por exemplo, pensamentos de grandeza, apetite sexual muito aumentado, pensamento acelerado com fuga de ideias. Podem haver delírios ou alucinações entre outras manifestações.
Para Bia Garbato, o primeiro desafio no transtorno bipolar é antecipar o diagnóstico que, geralmente, é feito tardiamente. Estima-se que somente dez anos depois dos primeiros sintomas, estas pessoas consigam fechar o diagnóstico da doença e serem devidamente tratadas.
Isto porque na fase eufórica ninguém pensa em buscar um psiquiatra. “De fato, se na fase da mania as pessoas aparentam estar felizes, otimistas e sentem-se poderosas, por que motivo buscaria um psiquiatra?”, questiona Bia.
Tratamento adequado minimiza os risco de suicídio
Acontece que quanto mais cedo receberem o diagnóstico, maiores serão as chances de ter a doença sob controle e menores serão os riscos associados à mesma. Inclusive o risco de suicídio.
Estudos demonstram que pacientes com transtorno bipolar possuem maior risco de suicídio quando comparados à população em geral e a pessoas com outras condições psiquiátricas.
Sob esta questão, Bia Garbato, considera que a fase da euforia, quando imediatamente seguida a depressão, requer mais cuidados e atenção por parte dos amigos e familiares.
“Na depressão a pessoa não tem ânimo, nem forças para nada. Porém na euforia ela tem muita coragem e pode colocar um plano de suicídio em ação.
Impulsividade
De fato, a impulsividade é uma das principais características que podem contribuir para o comportamento suicida nas pessoas com transtorno bipolar. Isto, sobretudo nos casos mais graves da doença, quando há uma rápida alternância de sintomas depressivos e maníacos no mesmo episódio. “Ou ainda quando os episódios coexistem de forma combinada”, reforça Bia.
E neste caso, o atraso no diagnóstico e, por consequência, na estabilização do humor pode aumentar sim o risco de suicídio. E mais: pode resultar ainda em progressão da doença e deterioração clínica por falta de tratamento.
Uma das consequências do subdiagnóstico, por exemplo, é o uso indevido de medicamentos para depressão nesta população. Isto porque, são fármacos responsáveis por desencadearem a fase de mania, levando a pessoa a sair da depressão para euforia.
“O maior gatilho para as crises bipolares são os antidepressivos quando tomados isoladamente”, revela com conhecimento de causa Bia Garbato, que durante muitos anos foi tratada apenas com antidepressivos.
“A minha sugestão para alguém com ideação suicida é: conta para alguém. Muitas vezes, nestes casos, é a vergonha que nos impede de falar”, afirma, revelando que também enfrentou episódios de ideação suicida.
O que acontece é que, muitas vezes, a pessoa sozinha não consegue buscar ajuda. Isto por que não se trata apenas de força de vontade. Por isso mesmo, segundo Bia, os familiares devem insistir e tentar ajudar de qualquer jeito.
O diagnóstico e as “loucuras” emblemáticas
O diagnóstico de transtorno bipolar para Bia não fugiu à regra. Veio tardiamente, aos 31 anos, cerca de 15 anos depois da primeira crise aos 16 anos de idade. E aconteceu justamente após episódios de hipomania que para ela se tornaram emblemáticos.
Era o dia do seu aniversário e ela estava na cama. “Meu marido resolveu me tirar de lá a qualquer custo. Me vestiu, me arrastou para um almoço com primos. Eu suava e tremia, pois não queria ver ninguém. E olha que eu sou uma pessoa muito sociável”.
A noite terminou com uma festinha na casa do casal. A atenção que recebeu dos amigos, em forma de carinhos e abraços, foi o gatilho para que Bia virasse bruscamente a chave, saindo da depressão para a euforia.
No final daquele dia, ela escreveu no seu caderno: – hoje foi o dia mais feliz da minha vida.
“Mas veja bem: aquele foi o dia em que meu marido quase precisou de um guindaste para me tirar da cama. Na verdade, quando escrevi aquilo, eu já estava na lua. É uma felicidade tão extrema que você chega a se arrepiar”, conta Bia.
Apartamentos a venda
E foi justamente neste episódio de hipomania que Bia teve uma ideia genial: comprar apartamentos no edifício onde morava para que os amigos pudessem viver no mesmo prédio que ela.
“Nós éramos duros nesta época. Pedíamos pizza uma vez por mês, mas eu acreditava nisso”.
Muito entusiasmada, Bia colocou seu plano em ação: entrou em contato com os corretores dos imóveis à venda e chegou a ir na caixa econômica para ver a possibilidade de empréstimo.
E não só: cismou que queria comprar também os apartamentos dos vizinhos ainda que eles não estivessem à venda. Por isso, fazia sentido arrumar desculpas para visitar estes imóveis também. “Meu marido dizia que eu estava fora da realidade”, recorda.
Ainda assim, depois de perceber que a sua ideia era economicamente inviável, Bia quase convenceu seu marido a comprar pelo menos um imóvel no mesmo prédio para montarem um ateliê juntos.
Foi nesta fase que recebeu o diagnóstico de bipolaridade e se safou. “Com o tratamento, de fato percebi que estava completamente fora de mim”.
Um táxi, por favor!
Outro episódio emblemático, um pouco antes do diagnóstico, foi ter pego um táxi com o qual circulou das 6h às 21h passando em casa de todos os seus amigos para dar um beijo neles.
“A meta era todos. No final daquele dia, caí em mim e falei: – preciso ir ao psiquiatra. Eu estava super deprimida e agora não estou mais. Hoje passei do ponto”, lembra Bia revelando que sempre foi autoresponsável em relação a sua doença.
“Busquei todo o conhecimento que podia na área e sempre fui por conta própria às consultas.”
Na consulta de psiquiatria, a escritora recorda que falou sem parar durante uma hora. “Falei de tudo: desde o dia que eu nasci, a promoção da Zara, as pirâmides do Egito, emendando um assunto no outro.
Quando meu pai entrou na sala, a médica disparou: olha a sua filha é bipolar. Ele disse: você nem conhece a minha filha. Você precisa observá-la por alguns meses para saber se ela é ou não é. A médica respondeu: se eu deixar ela sair desta forma será um ato de negligência médica.
A negação da família
Hoje Bia compreende a frustração do pai. Não era fácil ver a sua filha sair de um diagnóstico de depressão para outro que lhe parecia mais assustador. Principalmente, quando lhe foi dito que ela precisava tomar Lítio, medicamento padrão para o tratamento da doença.
“Lítio, minha filha não toma!”, conta Bia recordando a reação do pai ao saber dos cuidados e possíveis efeitos colaterais do Lítio.
“Depois daquele episódio, meu pai queria que eu fosse a outro psiquiatra, indicado pelo seu personal trainner. Ele imaginava que tudo se resolveria com um chá de camomila”.
Decidida a se tratar, Bia não pensou duas vezes. “Liguei pra médica e já tomo litio há dez anos”.
Medicação é fundamental
Para Bia, que estudou muito sobre o tratamento farmacológico no Transtorno Bipolar, comparado com outras classes de medicamentos – anticonvulsivantes e antipsicóticos – os efeitos colaterais do Lítio são menores.
A questão do Lítio é que ele precisa ser bem dosado e controlado, através de exames de sangue, de forma individualizada.
“Se estiver a menos não faz efeito e se estiver a mais, leva a toxicidade renal. Quando você finalmente consegue ajustar a dose é uma maravilha”, relata Bia que também faz uso dos antipsicóticos e anticonvulsivantes. “A medicação é fundamental para estabilizar a doença”, alerta.
“Uma grande vantagem do Lítio é que ele não engorda”, conta, lembrando que, em 2018, chegou a pesar 100 kg.
Em parte devido ao uso dos medicamentos, mas também por compulsão alimentar, uma das facetas da bipolaridade. É como se o “termómetro” da saciedade deixasse de funcionar.
Bia também conta no livro sobre a experiência de perder 30 kg em um ano, através de um programa de apoio. Hoje, mesmo estando magra, ela continua a participar de grupos de apoio e a pesar minuciosamente o que come. “Tenho consciência da minha compulsão, sobretudo por doces e carboidratos”. Bia também deixou de consumir bebidas alcoólicas.
Com tantas variáveis, o tratamento do transtorno bipolar não é fácil. Segundo Bia é uma verdadeira alquimia, pois é preciso equilibrar dois pontos: a depressão e a euforia.
No seu caso, com o passar do tempo, os episódios de hipomania foram se reduzindo. Porém, por muito tempo, ela ainda enfrentou sucessivas recaídas da depressão com altos e baixos na vida profissional.
Virando o jogo
A vida de fato começou a mudar para melhor quando Bia decidiu buscar a ajuda de um psiquiatra especialista em transtorno bipolar. Então, pesquisou muito até encontrar um profissional que poderia ajudá-la.
O psiquiatra Beny Lafer, que assina a orelha do seu livro, foi um dos profissionais que a ajudaram neste período. Determinada a virar o jogo, ela conta que na época precisou pedir dinheiro emprestado para fazer as consultas.
Com os ajustes promovidos no tratamento, Bia conta que renasceu. Finalmente, a depressão estava sob controle, o peso estava ok, mas e a vida profissional, como retomar?
Depois das algumas sessões de coach, descobriu que deveria investir na escrita, sua grande paixão. Até se encontrar, Bia deu muitas voltas: foi publicitária, trabalhou com decoração de interiores, artista plástica, teve uma empresa de som.
Por fim, decidiu que seria simplesmente dona de casa, que refere como sendo a mais difícil de todas as profissões que já experimentou.
Medo de se expor
Para falar a verdade, Bia sempre escreveu e compartilhou seus textos com os amigos. Porém nunca levou a sério os incentivos que recebia.
“O dilema principal era o que escrever, pois ao mesmo tempo que eu era super divertida, eu também era aquela pessoa que tinha depressões ocasionais.”
“E a depressão, esclarece, não é apenas tristeza como a maioria das pessoas pensam. Engloba fatores absolutamente insuportáveis como o pessimismo e a lentificação”.
Fato é que Bia venceu o medo e publicou um texto engraçado sobre sua depressão no seu Instagram (@biagarbato). O conteúdo gerou comentários positivos de pessoas que viviam realidades semelhantes.
Depois veio um segundo texto, desta vez sobre a obesidade e compulsão alimentar que também foi muito bem aceito e até foi repostado. Então, Bia descobriu que podia sim ser aquela pessoa que escreve muito bem e tem transtorno bipolar. Resultado: Bia saiu do armário!
Colunista, redatora e escritora
Bia Garbato virou colunista e cronista – atualmente escreve para o site da rádio Jovem Pan e para Revista Vero. Passou a viver como redatora free lancer e, com a doença estabilizada, decidiu que era hora de escrever seu primeiro livro.
Se articulou, buscou indicações quentes e correu atrás das editoras. Bateu em pelo menos dez portas diferentes. Ouviu porém, muitos NÃOS!
“Desculpe, mas o tema é muito pesado”.
“Olha, você não tem muitos seguidores no Instagram”.
“Neste momento, não estamos recebendo originais.
Determinada, ela já estava se preparado para fazer uma publicação independente quando recebeu a resposta positiva da Matrix. Sim, queremos o seu livro!
” Quando eu disse à minha mãe que o nome do livro seria “Bipolar sim, louca só quando eu quero”, ela disparou: -pelo amor de Deus com este título você não vai mais arrumar emprego!”, conta Bia sorrindo, absolutamente convicta de que a doença não a define.
Ficha técnica:
Título: Bipolar, Sim. Louca, Só Quando Eu Quero: historias para ler, rir e chorar
Autora: Bia Garbato – @biagarbato
Editora: Matrix
Editora: Matrix
Formato: 16 x 1,5 x 23 cm
Páginas: 160
Preço: R$ 40,00
Ano: 2023
Onde encontrar: Matrix Editora e Amazon
Transtorno bipolar: onde buscar ajuda
Brasil
Associação Brasileira de familiares, amigos e portadores de transtornos afetivos – https://www.abrata.org.br/
Portugal
Associação de Apoio ao Doentes Depressivos e Bipolares. https://www.adeb.pt/ Email: adeb@adeb.pt
Referências:
Nery-Fernandes F, Miranda-Scippa Â. Comportamento suicida no transtorno afetivo bipolar e características sociodemográficas, clínicas e neuroanatômicas associadas. Arch Clin Psychiatry (São Paulo) [Internet]. 2013;40(Arch. Clin. Psychiatry (São Paulo), 2013 40(6)):220–4. Available from: https://doi.org/10.1590/S0101-60832013000600003
Pacchiarotti, Isabella, et al. “The International Society for Bipolar Disorders (ISBD) task force report on antidepressant use in bipolar disorders.” American Journal of Psychiatry 170.11 (2013): 1249-1262.
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